sexta-feira, 21 de março de 2008

Uma Aventura na Selva

A missão quase impossível de produzir filme em Manaus.

Por Tabajara Moreno

“Corta, faz de novo, a queda não ficou boa!”, exclamou Amélia Serrão, 44, auxiliar administrativa e cineasta. Depois de insistir várias vezes na execução de uma cena, Amélia é alertada pela equipe de produção que o ator escolhido talvez não possa cumprir com as exigências do personagem e da cena em questão. A produção está decidida pelo cancelamento das filmagens e seleção de outro ator. A diretora titubeia, afinal, trocar de ator àquela altura prejudicaria muito as filmagens. Além disso, o ator é sobrinho dela e a principal locação do filme é a casa dele. E agora? Onde encontrar outro intérprete para continuar as gravações no dia seguinte? A cena foi refeita várias vezes, mas não funcionava. Algo precisa ser feito. Troca-se o ator e cancela as filmagens ou continua com o sobrinho e compromete o filme?
A equipe do curta-metragem “Parecença”, um dos vencedores do “Primeiro Concurso de Roteiros Artísticos do Amazonas”, promovido pela Secretaria Estadual de Cultura (SEC), estava num dilema real que poderia ser confundido com uma situação fictícia. Impelidos à aventura de finalizar um curta-metragem de cinco minutos, os realizadores de “Parecença” cumpriram inconscientemente as três etapas da jornada de um herói previstas pelo escritor estadunidense Joseph Campbell no livro “O Herói de Mil Faces”.
Campbell defende a existência do monomito (modelo universal de narrativa) no qual a trajetória do herói é comum em toda e qualquer cultura sendo marcada por pontos de conflito que movem o personagem na ação dramática.

Primeiro ato – Apresentação
A funcionária pública Amélia Serrão teve seu primeiro contato com produção audiovisual a partir de um curso de roteiro para cinema e televisão oferecido pelo Curso de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “No curso, produzíamos em equipe roteiros de curta e documentário. Aliás, num desses momentos nasceu o 'Parecença'. Na adolescência, tinha assistido a um filme de suspense sobre um demônio que se disfarçava de amigo para devorar as pessoas. Não recordo o nome do filme. Só sei que na noite seguinte, quando vinha da escola, lembrei da situação e fiquei em pânico. A luz do poste apagou, começou a chover. Parecia que tudo conspirava para criar o clima tenebroso”, revela.
O curta-metragem “Parecença” foi a primeira empreitada de Amélia Serrão no cinema e, apesar de ser um curta de cinco minutos, deu muito trabalho. “Poderia ter sido melhor, mas faltou experiência”, conta.
Dias depois de se inscrever no concurso da SEC, Amélia recebeu o telefonema da Casa de Cinema confirmando a aprovação no edital. Dali a duas semanas, o curta tinha que ser entregue senão Amélia seria multada por quebra de contrato tendo de desembolsar R$ 2 mil. Amélia estava inconscientemente diante do ponto sem retorno, acabara de atravessar o primeiro limiar.

Segundo ato – Conflito
Mudar o protagonista do filme foi “fichinha” perto do que aconteceria nos dias seguintes da filmagem de “Parecença”. Após um breve teste, o motorista da equipe foi escolhido para, naquela mesma noite, protagonizar o filme. Mas a resolução desse primeiro problema não significou a ausência de novos empecilhos.
Amélia conta que o “Demônio de Sukubis” do filme devia mexer o rabo, mas a falta de recursos financeiros para criação de efeito especial levou a equipe a “aliciar” com leite, salsicha e ração, os felinos da vizinhança. “Pegamos um gato de verdade e o prendemos com uma toalha até ele mexer o rabo”, revela.
Outra situação insólita aconteceu quando a produção não pôde gravar a seqüência na qual a personagem Carla saía do cinema depois do susto com o “Demônio de Sukubis”. A direção de um shopping de Manaus havia autorizado com antecedência as filmagens, mas na hora de gravar, proibiu. Por causa disso, surgiu entre a equipe a idéia de irem ao centro da cidade tentar autorização para gravar nos cinemas pornô. “Foi complicado, porque lá também não deixaram filmar dentro do cinema. Só fora”.
E não foi só isso que atrapalhou as filmagens. Todos já haviam desistido de gravar no cinema quando entraram no carro para ir embora. Entretanto, para surpresa de todos, o carro pregou. Amélia e a filha Daniele Serrão, protagonista do filme, ficaram paradas na frente do cinema pornô enquanto o motorista procurava um mecânico. “Ficamos paradas e os caras dos carros (sic) mexendo conosco. Não foi legal”, relata.
A universitária Claudilene Siqueira, 30, começou a participar da cena audiovisual amazonense em 2005, quando fez parte da oficina de cinema e vídeo, ministrada por Júnior Rodrigues, no Centro Cultural Cláudio Santoro. O primeiro filme dela foi “Geyzislaine, meu Amor”, no mesmo ano.
Claudilene produz a maioria dos vídeos dos quais participa e revela: “no set de filmagem o imprevisível sempre acontece”. Quando, em 2006, produzia o curta-metragem “Dèjá Vu”, foi surpreendida minutos antes de ir para a locação. Na noite anterior, ela confirmou com os atores, o continuísta, os cinegrafistas e demais envolvidos e foi dormir tranqüila imaginando que nada atrapalharia as filmagens. Entretanto, no dia seguinte ela se assustou quando a atriz telefonou avisando que não ia mais filmar. “Tudo está acabado”, pensou. Além de protagonizar o filme, a pseudo atriz emprestaria o cachorro e o carro para a gravação. “Eu fiquei desesperada atrás de um cachorro, um carro e uma atriz”, conta, gargalhando.
Depois de algumas experiências audiovisuais, Claudilene acredita que, mesmo pré-produzindo cuidadosamente o filme, sempre haverá problema durante a gravação. “Achar que no set tudo vai dar certo é ilusão. Sempre o ator tá com dor de cabeça, a câmera pifou, o microfone não funciona, enfim”, afirma.
O último trabalho de Claudilene foi o curta “Vítimas S.A”, no qual a diretora do filme exigiu um revólver 38 de verdade. Claudilene já tinha conseguido a arma com um amigo, mas na hora de filmar, ele não apareceu e nem deu satisfações sobre o sumiço. As filmagens aconteciam na Rua Duque de Caxias, Praça 14, perto do Batalhão de choque da PM. Todos estavam chateados com a situação quando ela teve a idéia de ir ao batalhão pedir um revólver emprestado. “A princípio, o policial achou o pedido estranho, mas acabou emprestando o revólver. Nada que uma conversa não resolva”, explica.

Terceiro Ato – Resolução
A primeira experiência de Amélia com audiovisual foi difícil, mas permitiu que ela conhecesse as dificuldades de filmar em Manaus. “Os recursos são pequenos e os profissionais escassos”, desabafa Amélia. Entretanto, os inúmeros contratempos não a desanimaram. Questionada pela reportagem se, em algum momento pensou em desistir de filmar, ela foi enfática: “Isso não. Os amigos que me ajudaram foram dedicados trabalhando de graça, inclusive de madrugada. Pedi a casa de cinema para não exibirem o filme, pois gostaria de refazê-lo”, revelou.
Por causa do “Parecença”, Amélia quase foi demitida. Depois de três dias consecutivos faltando ao trabalho, a ameaça do patrão veio acompanhada de um ultimato: mais uma falta e está demitida! – A escolha não foi difícil considerando que, financeiramente, o ganho com o filme foi zero. “Um artista precisa comer, vestir. Pelo menos não perdi o emprego”, expõe.
É a atriz protagonista que quebra o pé minutos antes de filmar, é o patrocinador que morre antes de pagar a cota de patrocínio, é o entrevistado do documentário que exige uns trocados para falar. Enfim, ousar fazer cinema no Amazonas é se entregar a uma aventura imprevisível e, por vezes, hilariante.

Nenhum comentário: