Apesar de estar situado em uma conhecida rua do centro da cidade de Manaus, o lugar passa despercebido pela grande maioria dos transeuntes. É um casarão antigo, como muitos em Manaus – talvez por isso não chame a atenção de quem passa. Mas a discreta placa instalada logo acima dos portões de ferro não deixa dúvidas: aquele local se dedica à arte amazônica. Mas não simplesmente de obras que se focam de maneira superficial a tentar mostrar a realidade da região, mas de objetos que, de certa forma, são a região.
Assim são, pois traduzem muito mais que elementos artísticos com pretensões a obras-primas. Os artefatos expostos são frutos de uma gama incomensurável de sensações; das mais cotidianas e resultantes das necessidades do dia-a-dia, a extremos de paixões misturados com a impossibilidade da explicação do lado espiritual do ser humano.
A mágica, como já se pode perceber, não está em adornos externos. Não se trata de uma questão puramente relacionada com a localização do lugar, muito menos com seu significado para os corretores de imóveis. O poder que emana do lugar vem daquilo que ele traz consigo; do elo que simples objetos possuem com a História e de sua estreita ligação com os tempos atuais. Aqueles cujas delicadas mãos trabalharam sem pretensões de grandeza ou vaidade agora descansam, e seus frutos podem ser vistos por qualquer um de nós, mesmo aqueles que não dão tanta importância para os povos que por aqui habitavam muito tempo antes de nossos colonizadores.
O ambiente recria a história
Ao entrar no estrategicamente mal iluminado interior do Museu Amazônico, situado na Rua Ramos Ferreira, 1.036, Centro da cidade, o observador-visitante poderá, sem quaisquer dificuldades, vislumbrar uma série de elementos artísticos dos povos indígenas amazônicos dispostos de forma lógica. Lógica no sentido antropológico.
Quem recebe o visitante e Custódio Rodrigues, técnico em conservação e restauro que trabalha no local e leva os interessados a uma nova forma de contemplação dos objetos expostos. Isso mesmo, nova forma de contemplação. “Os objetos não podem apenas ser observados. Deve-se fazer uma contextualização destes artefatos sem generalizá-los apenas por uma etnia, e sim por uma gama maior da região, uma vez que existem várias informações que nos levam a perceber a importância de cada uma delas”, explica Custódio Rodrigues.
Ao longo do caminho, que transpassa por duas grandes salas no térreo e mais seis no segundo andar, o guia “antropológico” esmiúça cada peca, procurando trazer um significado a mais que sua simples função básica de “existir”. “Para começar, não se pode deixar de lado a questão antropológica, já que quando você vai falar destes povos, você inevitavelmente fala do relacionamento dele com a própria natureza, com a sua crença, com seus mitos, com sua relação com a floresta”, diz.
Como exemplo, Custódio mostra uma urna funerária de cerca de dois mil anos de existência. Segundo ele, a urna representa a crença no pós-vida, ou seja, uma abstração da existência de cada um como indivíduo e de sua ligação com o sobrenatural. “A pessoa não era simplesmente colocada dentro da urna. Havia um processo de segundo sepultamento, onde entrava a urna. Os órgãos eram arrumados em urnas menores, e isso variava conforme a hierarquia do indivíduo na sociedade e que vivia”, explica, fazendo uma referência aos antigos povos egípcios, que também faziam distinção social de seus mortos no processo de mumificação.
Passado o recinto dedicado a arqueologia indígena, o guia leva o visitante a segunda parte da viagem nas terras dos “povos antigos”. Agora estamos na seção dedicada aos artefatos do cotidiano, onde as peças têm função exclusiva de proporcionar agilidade nas ações. Entre as pecas, destacam-se elementos redes de dormir, fogareiros, peneiras, balaios e cestos. “Todo o material usado pelos indígenas podia ser encontrado em seu próprio meio, assim os artefatos inevitavelmente possuem uma ligação com a nossa região”, explica Custódio, dando como exemplos a rede de dormir, feita de palha de buriti.
A religiosidade e vida dos povos amazônicos
Apesar de estarem diretamente relacionados com o dia-a-dia, muitos objetos possuem características artísticas únicas, que segundo Custódio, também estão relacionados com as crenças nas divindades. “Todo o grafismo existente em muitas das peças não foram feitas simplesmente por serem feitas. Tudo é trabalhado em função de uma mitologia e de uma crença”, salienta.
Um ponto curioso citado pelo especialista é a “contemporaneidade” da funcionalidade de muitos dos objetos presentes na exposição. “Se eu comparar, por exemplo, as armas de caça de um guerreiro que sai todo dia para caçar, é o mesmo que um menino que vai pra escola e leva a mochila cheia de material didático. Tudo que ele necessita para a aula ele tem ali”, compara.
Mas o contato com outros povos – principalmente os colonizadores – trouxe uma série de conseqüências na confecção dos artefatos. Em certo momento da visitação, o guia mostra uma tábua usada pelas mulheres indígenas para ralar alimentos. A peça usa pequenos fragmentos de alumínio, que facilitam o processo. “O uso desses metais é um reflexo deste contato”, afirma, lembrando que a troca de “tecnologias” pode ser positiva e negativa; o que caracteriza a natureza da troca são as circunstâncias. “A tábua com alumínio certamente facilitou a vida nas aldeias, mas deve ter tido também suas conseqüências negativas”, pondera Custódio. “Muitas delas devem ter se cortado até dominarem a técnica”, argumenta.
Ao longo da caminhada histórica, a trama dos povos tende a seguir para o sobrenatural. Do cotidiano – que tem seu próprio elo com a religiosidade – a exposição vai para o rumo das danças e ritos; estes totalmente submersos em uma aura de ligação com o divino. Entre máscaras e vestes de rituais, o visitante quase que pode ser transportado para uma época onde a explicação do mundo visível e invisível só podia ser contemplada mediante contato com o mundo de Tupã.
Máscaras Ticunas servem de exemplo. O especialista, após admirar as pecas por poucos instantes, narra o rito Ticuna da “Moça nova”, onde as meninas têm os fios de cabelos arrancados como forma de marcar a passagem para a vida adulta. “É um ato dolorido. Quem trabalha realmente nessas etnias são as mulheres. Os homens só caçam; o serviço pesado é das mulheres”, justifica o especialista.
Algo semelhante acontece com os meninos das tribos Sateré-Mawé. Para provar que é um guerreiro forte, os meninos desta etnia devem usar a famosa luva de palha recheada de formigas Tucandeira. “Ele coloca a mão dentro da luva e tem que agüentar as ferroadas das formigas, assim fica marcada sua passagem para a vida adulta”.
Mesmo na seção dedicada aos armamentos indígenas, a concepção artística permanece presente, seja nos detalhes discretos de pequenas plumas nas zarabatanas, nos conjuntos de arco e flechas, ou nos grandes cocás dos líderes indígenas. “As plumagens são feitas a partir das penas de aves locais, como arara, gavião, papagaio. O que impressiona é a combinação de cores que eles usam”, afirma Custódio, em admiração.
O percurso, então chega ao fim. Cerca de 470 pecas de 23 etnias podem não ter a capacidade de reconstruir o passado quase épico dos povos indígenas amazônicos, mas sem dúvida alguma podem levar o cidadão amazônico pós-moderno a repensar suas origens – hoje quase tão esquecidas e superadas como os costumes de boa parte dos povos indígenas que por aqui viviam. Yupinawaitá; artefatos. Recortes de indivíduos de diferentes momentos históricos, mas que, juntos, servem de pilar para a conservação de uma bela História que jamais deveria morrer.
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